Ao mesmo tempo em que correm o mundo imagens que revelam a violência e o horror envolvidos no rompimento da barragem da Mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho, emergem da lama histórias de verdadeiros milagres da sobrevivência e da solidariedade. Ontem, quando começaram a circular vídeos de câmeras de segurança que registraram a liberação da onda com 13 milhões de metros cúbicos de barro no complexo da Vale na Grande BH, o Estado de Minas localizou em cidades da região metropolitana da capital três sobreviventes flagrados pelo monitoramento nos momentos iniciais da catástrofe, que escaparam para contar suas histórias em circunstâncias que beiram o inacreditável. Os funcionários da Vale que primeiro avistaram a avalanche de lama que partiu a 114km/h da barragem, 500 metros distante, e engoliu toda a área administrativa da empresa assistiram, incrédulos, às imagens da tragédia que se tornaram públicas ontem. A reportagem do EM acompanhou o encontro dos sobreviventes pela primeira vez depois do acidente. Leandro Borges Cândido, de 37 anos, Sebastião Gomes, de 54, e Elias de Jesus Nunes, de 43, resistiram à força dos rejeitos da mineração que arrastou edifícios, contorceu vagões e descarrilou o trem de minério, deixando rastro de morte e dor por onde passou.
“Ficamos parados (na caminhonete), muito equipamentos debaixo da gente. Muitos tratores. Muitas locomotivas. Tudo soterrado. O que mais me entristeceu foi quando o helicóptero subiu (depois do resgate) e lá do alto avistei os refeitórios, de onde eu tinha acabado de sair. Vi a área administrativa, as oficinas mecânicas, unidades de saúde. Tudo tinha ido embora. Meus amigos… É muito devastador. Fico mais revoltado ainda quando vejo a barragem naquele local e vidas humanas na linha de frente. Aparentemente não havia risco de ela vir abaixo. Mas poderia acontecer um dia. Aconteceu”, conta Sebastião.
No alto, a picape cercada pela onda de lama e acima, arrastada e virada sobre o barro(foto: Gladyston Rodrigues/em/d.a press)
Ao ver a imagem pela TV, em casa, no Bairro Jardim das Alterosas, ao lado dos filhos e da esposa, Sebastião não consegue conter o choro e a gratidão a Deus, a quem ele atribui a possibilidade de mantê-lo vivo, enquanto outros colegas de empresa não tiveram a mesma sorte. Sebastião também é grato a Elias, que gritou para que ele pudesse entrar na caminhonete em que escaparam. Nas imagens das câmeras de segurança, a picape aparece fazendo zigue-zague, indo em diferentes direções para tentar fugir da lama, que surgia de todos os lados, fechando o cerco em torno do veículo. “Não tem como descrever aquele momento de horror. Só lembro de correr. Só lembro de Elias gritando: ‘Sebastião, entra na caminhonete’. Elias ia para um lado, ia para outro e não achava lugar de sair. De repente, começamos no desespero gritar pelo nome de Deus. Orar o Pai-nosso na maior altura. Pedimos a Deus: ‘Perdoa nossa vida. Entregamos nossa vida’”, descreveu. Ao rever as cenas, Sebastião revive todo o sofrimento. “Eu tinha acabado de sair do restaurante. Eu e Elias estávamos indo em direção à Mina de Jangada, no sentido da barragem, para fazer atividades de rotina. Aí nesse dia tínhamos que fazer batedor (escolta) para o caminhão do senhor Antônio, para fazer sucção da fossa logo acima. Quando entramos naquele carregamento de trem, onde circulavam os vagões, enquanto seu Antônio fazia o trabalho dele, escutamos um estrondo ensurdecedor. Não tinha como expressar. Foi muito forte”, conta o trabalhador. Não tinha como os sobreviventes escaparem do tsunami da lama, que veio por dois lados, tanto na direção da barragem, como do outro lado onde estavam os vagões de trem. Por segundos, eles viram a morte. “A natureza se calou naquele momento. A gente via naqueles locais muitos pássaros cantando, principalmente canários. De repente, a natureza se calou. Não se ouvia ventando, barulho de nada. Só aquele silêncio.” Os dois colegas olharam para os lados, viram a devastação e de imediato pensaram que se não tinham morrido é porque tinham uma missão. Foi quando viram Leandro preso na escavadeira e, mesmo sem saber se afundariam na lama, não hesitaram em tentar salvar o colega. “Nem sabia o nome dele. É tanta gente na empresa… Chegamos no trator, estava ele lá só com parte do rosto do lado de fora, parte do braço. Desesperadamente começamos a cavar. Havia feito treinamento de soterramento, que a empresa dava treinamento para a gente. A gente esquece algumas coisas. mas lembra outras. Pensei: ‘Vamos tirar o peito dele para ele respirar’. Conseguimos cavar a terra com a mão e ele deu uma respirada”, recorda-se Sebastião.
O medo de a tragédia ainda ser maior não saía da mente de Sebastião. “Olhei para a B6 (a barragem de água que restou) e vi que ela poderia estourar a qualquer momento. A B1 estourou, bateu na base dela, abalou a estrutura e ficou aquela mancha de água. Aquela umidade só subindo. Falei: essa barragem vai descer e vai complicar ainda mais. Foi quando os bombeiros chegaram”, afirma.
Elias estava no volante da caminhonete e inicialmente pensou que o trem da mina é que havia descarrilado. “Na hora, pensei que era descarrilamento de vagão. Quando vi o mar de lama, falei: ‘Corre, Sebastião. É a barragem que estourou’. Entramos na caminhonete e tentamos fugir. A gente foi para um lado e topou de frente. Tentei outro lado e ela cercou a gente. A lama jogou a gente para cima”, afirma. VÍDEO Assim que conseguiu sair da caminhonete, Sebastião gravou um vídeo com o celular, que mostra como foram os primeiros minutos após a passagem do tsunami de rejeitos. Muito emocionado e trêmulo, ele lamenta a cena de destruição: “Ó, meu Deus. Tudo soterrado, senhor. As máquinas, meus colegas… Todos embaixo da lama, meu Deus”. Nos apenas 20 segundos de imagens é possível ver a imensidão de lama que se tornou o pátio da área administrativa, com pedaços de metal retorcidos de veículos e construções. Ao fundo, uma buzina toca sem parar. Do outro lado do local onde Sebastião está, vagões de trem tombados pelo tsunami de rejeitos podem ser vistos. As imagens ainda mostram Leandro, que foi resgatado da lama pela dupla.
O operador de carregadeira Leandro, que é funcionário da Vale há dois anos, havia ficado praticamente encoberto pela lama. Mal conseguia respirar, pela pressão que a lama fazia no peito, comprimindo os pulmões, e porque a terra chegava até seu nariz. “É muito rápido. Não dá para ver. Esses caras foram meus anjos da guarda. Ajudaram demais”, conta ele, afirmando lembrar-se da tragédia como de cenas de filme. “Eu vi vagões voando. Não dava para acreditar.”